ENTREVISTA: LEITURA DA LITERATURA NA ESCOLA

Ezequiel Theodoro da Silva 

O AMIGO JEOSAFÁ ME PEDIU E EU RESPONDI. BOA LEITURA AOS AMIGOS!

Qual a relevância da literatura na formação do aluno Educação Básica pública?

O homem precisa, ao longo da sua existência, cultivar e esmerar a sua racionalidade e a sua fantasia. E na incessante busca da sua completude, o homem precisa equilibrar sabiamente as doses de realidade e de fantasia em sua vida, sem que uma sobrepuje, ofusque ou esmaeça a outra. A literatura é um artesanato da palavra, tecido na fantasia do escritor e que, via um suporte específico (livro, por exemplo) interpela a fantasia do leitor para a ativa/participativa recriação desse tecido. A fantasia, por sua vez, é uma capacidade que permite ao homem projetar elementos da sua imaginação e, ao mesmo tempo, lhe mostrar que existem outras formas de ser e existir, além daquelas que estão aí no mundo administrado, hodierno, ou seja, a fantasia abre ao leitor maneiras alternativas de ver as coisas, formas plurais de perceber a realidade, inusitadas decisões para serem tomadas e/ou, ainda, ações mais robustecidas sobre os fenômenos e objetos do mundo. Além do cultivo da fantasia e da imaginação, o texto literário, seja direta ou indiretamente, expressa sensibilidade, tanto emocional quanto linguística – nestes termos ser enredado por um texto literário é concomitantemente educar a nossa própria sensibilidade pelas práticas da leitura. Por isso tudo, e se quisermos nos desviar de uma educação de um homem “pela metade”, é que a literatura é importante, relevante, imprescindível na formação de qualquer aluno, não só o da educação fundamental ou básica.

O tempo hoje destinado à literatura na escola pública é suficiente?

A literatura geralmente entra pela porta da disciplina “Língua Portuguesa”, num percentual que nunca é muito certeiro ou objetivo, dependendo da organização curricular e do conhecimento pedagógico do professor. Em São Paulo, o Governo instituiu o Projeto “Hora da Leitura”, orientando atividades de leitura da literatura. Entretanto, a experiência e algumas pesquisas mostram que essas atividades ficam extremamente prejudicadas pela ausência de condições concretas para a fruição prazerosa e consequente de obras literárias. Além disso, o tempo escolar é todo fragmentado em disciplinas estanques, ainda que o discurso proclame temas transversais, trabalhos integrados e coisas do tipo. O serviço de abastecimento de obras de literatura através de bibliotecas escolares (dignas desse nome) também é precário ou muitas vezes inexistente. Dessa forma, dentro desse contexto não sobra muito tempo para a leitura da literatura e eu diria que ele é “insuficiente”, como é insuficiente o tempo para as matérias humanísticas – estas, ou desapareceram ao longo dos anos, ou foram secundarizadas pelas matérias que mais diretamente correspondem à lógica da razão instrumental, voltadas à preparação dos estudantes para o mercado.

A forma como a literatura é hoje abordada na escola pública é satisfatória?

É difícil, senão impossível, descrever com rigor e objetividade, fundamentando-se em investigações empíricas, as abordagens relacionadas ao encaminhamento da literatura nas escolas públicas brasileiras. Algumas reflexões apontam para o ensino do tipo pretexto, ou seja, a utilização de textos literários para se ensinar movimentos literários, normas gramaticais, modelos de redação, etc. – uma utilização que se distancia de uma fruição estética prazerosa, como deveria ser o objetivo desse tipo de leitura. Outras reflexões já apontam para algumas experiências pedagógicas através das quais os alunos são expostos a obras literárias e incentivados a lê-las como se deve. Em 2010, ainda que existam recomendações até razoáveis sobre os modos de exposição dos estudantes à literatura, o que se vê é um “mingau” pedagógico onde por vezes cabe de tudo – e esta situação decorre, muitas vezes, do baixo repertório pedagógico e metodológico dos professores ou, o que muito pior, de uma experiência muito pobre com a literatura.


Recorte de obras e autores estudados na escola pública hoje é adequado?

A produção literária brasileira, principalmente a infanto-juvenil, cresceu exponencialmente a partir da década de 1980. Em verdade, em função da chamada “crise da leitura”, as editoras aumentaram o alcance de suas edições em função das imensas aquisições para distribuição às escolas. Também já vi de tudo nesses recortes: desde os clássicos estrangeiros e nacionais até a composição de coletâneas que viessem a atender as necessidades dos alunos e de suas famílias, como aconteceu no Projeto “Biblioteca em sua Casa”. Os guias curriculares são extremamente cuidadosos em suas listas e em suas sugestões de modo a não melindrar uma casa editora ou outra. No meu ponto de vista, ainda carecemos de uma reflexão crítica a respeito desses recortes de modo a conduzir a construção de um currículo de leitura mais de acordo com a riqueza literária que possuímos e que levasse em conta o respeito ao nosso acervo cultural, a faixa etária das crianças e jovens, os contextos regionais de ensino, os interlocutores fundamentais da leitura e assim por diante.

A polêmica entre obras clássicas X obras de sucesso do mercado editorial tem fundamento?

Nunca gostei desse antagonismo... creio que a organização curricular, fundamentada numa visão crítica dos clássicos (que merecem ser lidos ao longo da trajetória escolar) junto com obras de interesse dos estudantes (possivelmente sucessos editoriais), é que deveria somar as duas pontas em benefício de uma formada “redonda” dos leitores em fase de escolarização. Defendo uma espiral de oferta de obras que preencha quesitos da instituição escolar e, ao mesmo tempo, traga para o currículo aqueles sucessos editoriais que possam atender os estudantes em suas diferentes etapas de crescimento e desenvolvimento. Mas não abro de uma seleção rigorosa de obras para ser exposta aos estudantes na sua trajetória escolar, ou seja, sou contra o lixo literário, contra obras meramente comerciais que nada têm de literário e nem de compromisso com o imaginário infanto-juvenil e contra obras alienantes como as de autoajuda; estou mais do que convencido que o tempo de escola das pessoas deve ser preenchido com as boas obras de literatura, evitando-se a oferta da falsa literatura – isso não acrescenta nada e certamente levará à alienação dos leitores. Abro uma exceção quando se lê um artigo do lixo literário para mostrar aos alunos os porquês de aquilo ser ruim e nada acrescentar em termos de formação do gosto ou cultivo de um hábito.

Qual o papel dos livros didáticos e dos chamados “paradidáticos” na formação do leitor de literatura?

Depende de como são apresentados os didáticos e paradidáticos aos estudantes. Há uma lógica terrível na estruturação de livros didáticos, que muitas vezes é ingenuamente copiada na leitura dos livros de literatura. Essa lógica é assim constituída: texto (geralmente curto), seguido de questionário (de compreensão e/ou interpretação), estudo da gramática e redação. Redundantemente apresentada junto com as lições do livro didático e estendida para a leitura da literatura, essa lógica trai a natureza do texto literário e, ao mesmo tempo, produz uma imagem de que a leitura tem de ser assim – e somente assim – processada em sala de aula. Se os objetivos ou as finalidades desses três tipos de textos (didático, paradidáticos e literários) fossem mais bem entendidos pelos mediadores-professores, acredito que determinados abismos pedagógicos pudessem ser evitados. Enfim, acho que os três podem cumprir propósitos sadios na formação dos leitores, mas desde que o professor soubesse diferenciar a sua gênese e, ao mesmo, propusesse atividades que não traíssem as suas finalidades. Assim, por exemplo,

Didático – ensinar, no contexto de didático-pedagógico construído pelo professor.

Paradidático – complementar o ensino proposto pelo professor

Literário – vivenciar/fruir horizontes de sentidos pela fantasia, sem controle de resultados, sem cobranças via questionários.

Qual o papel do professor da Educação Básica pública voltado para a formação dos leitores de literatura, consideradas as particularidades etárias das séries iniciais e finais do Ensino Fundamental e as do Ensino Médio?

Antes de tudo, possuir uma base adequada de conhecimentos em psicologia, sociologia e antropologia, que o permita ler e conhecer objetivamente a faixa de desenvolvimento das crianças e jovens do ensino fundamental e ensino médio. Além disso, como mediador de leitura ou informante de leitura, buscar informações a respeito de obras de literatura que possam ir de encontro aos interesses dos leitores ao longo do seu desenvolvimento escolar. E, finalmente, acionar metodologias de ensino que não traiam a natureza da literatura.

Que papel o estudante da escola pública desempenha ou deveria desempenhar no processo de sua própria formação enquanto leitor de literatura?

Há um ditado que diz: “Na escola o leitor aprende a ler para, de maneira autônoma e independente, ler para aprender” – o aprender a ler e o ler para aprender são dois movimentos complementares de “polimento” de um leitor em direção à sua maturidade. Nestes termos, antevejo na iniciativa do estudante em buscar novos textos para ler um papel importante na sua conquista de autonomia e de frequentação a obras e gêneros diferenciados de escrita. Tive vários professores ao longo de minha formação escolar que sempre sugeriam obras ou textos para complementar as nossas visões sobre um determinado tema e cabia a nós procurar e ler essas referências. Hoje em dia a Internet facilitar muito essas caminhadas autônomas em busca de mais textos para o aprofundamento de um assunto. Entendo a “iniciativa”, a “disciplina”, a “curiosidade”, a “criatividade”, etc. como condutas as serem estimuladas pela escola.

Em que a gestão democrática da unidade escolar prevista pela nova LDB ajuda ou dificulta o trabalho com a literatura?

Muito pouco ou nada, pois duvido que os professores conheçam e vivam concretamente a gestão democrática nas escolas brasileiras. Depois de mais de 30 anos de magistério, trabalhando com professores de todos os níveis do ensino, estou convencido que as leis, decretos, resoluções, portarias, etc. afetam muito pouco aquilo que concretamente ocorre nas escolas e nas salas de aula. Retomo aqui, por exemplo, o PNE - Plano Nacional de Educação, elaborado em 2001, que não atingiu nem 1/3 das metas estabelecidas. Faça-se uma investigação a respeito do quê os professores conhecem – e cumprem – da LDB e ficaremos todos assustados. Entre a letra das leis e aquilo que ocorre no terreno escolar há um abismo imenso. Portanto, creio que o pouco que se faz de consequente no trabalho com a literatura depende muito mais do esforço e do bom-senso de determinados professores do que aquilo que vem das leis brasileiras.


Em quê o eventual sucesso do ensino de literatura contribuiria para a elevação dos índices de desempenho escolar da escola pública?

Não sei! Considerando a lamentável quadro dos índices nacionais de desempenho no âmbito das escolas públicas, essa hipótese é muito difícil, se não impossível, de ser testada no campo prático. Eu não acredito que a literatura possa ser tomada como uma panaceia ou uma solução única para a melhoria da qualidade da educação escolarizada. Ademais, eu defendo o retorno de várias disciplinas humanísticas ao currículo de modo a contrabalançar o estrago feito no período ditatorial e pós-ditadura. Arriscar uma resposta para esta pergunta seria muito para mim, ainda que eu possa antever e sentir os benefícios que a leitura prazerosa da literatura poderia gerar junto aos discentes; prefiro pensar a escola e seu currículo em termos globais, com a literatura ocupando um espaço e cumprindo seu papel dentro desse todo. Sem esse equilíbrio, poderemos inverter as coisas, como costuma acontecer na escola brasileira: uma vez falou-se em “prazer da leitura” na escola e todo mundo foi atrás dessa meta, deixando para segundo plano o ensino eficiente da matemática, da história, das línguas, etc. – uma drástica inversão porque a qualidade precisa estar presente em todas as matérias e ações escolares, nunca se centrando numa só.


É possível mensurar em quê o país se beneficia em termos econômicos no caso da ampliação do mercado de leitores de literatura?

Não tenho dúvida de que as editoras ganhariam muito mais do que já faturam hoje em dia, caso tivéssemos um público maior de leitores de literatura e outros gêneros de escrita. Principalmente porque o gosto e a criticidade dos leitores é depurada através da busca e da leitura de muitos textos. Considero ainda que os serviços públicos e gratuitos de acesso ao livro no Brasil, como aqueles oferecidos por bibliotecas e centros de cultura, são raros, precários e muitas vezes obsoletos.

Em que a ampliação do universo de leitores de literatura contribui para o reforço das instituições democráticas?

Também não sei e nem arriscaria uma resposta nestes tempos de tantas encruzilhadas e perplexidades. Fico pensando se um imenso universo de leitores de literatura seria capaz de enfrentar a classe política brasileira, tão podre, tão parasitária e tão sacana como é. Acho que a leitura de determinadas obras literárias podem abrir os nossos olhos, podem nos fazer mais conscientes a respeito das práticas democráticas, dos direitos e deveres do cidadão, de democracias pela metade, de injustiças sociais, etc. Mas seria arriscado afirmar que a fruição da literatura reforça as instituições democráticas. Lembro que José Sarney, um dos maiores ladrões deste país, é membro da Academia Brasileira de Letras e Presidente do Senado Federal – veja que barbaridade!

O que é literatura?

Desde o meu curso de letras (Língua e Literatura Inglesa, 1968-1971), concebo a literatura como o produto do artesanato da palavra – palavra esta projetada, transformada e tecida pela fantasia dos escritores. E somente ganha vida ou existe na medida em que for recriada pela fantasia dos leitores.

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