O PROBLEMA DE DONA AURÉLIA DAMACENO
PARA ENTENDER O CONTEXTO
Como parte da disciplina EP701-LEITURA E ENSINO, oferecida pela programa de pós-graduação em Educação da Unicamp, propus um estudo de caso de um texto narrativo-experiencial, contando um pouco da vida de uma professora chamada Aurélia Damaceno. Pedi à turma que analisasse o texto e elaborasse três conselhos para a professora.
A discussão conduziu o grupo para diferentes lugares e regiões de significação. Aqui apresentamos uma das análises, produzida por Diego Pereira da Silva, aluno do curso e professor da educação básica da cidade de Monte Santo (BA).
Cremos que a leitura dessa narrativa de vida e da sua análise subsequente poderão oferecer muitas ideias interessantes para pensarmos o problema em questão e, ao mesmo tempo, explicitar aspectos relacionados com uma teoria crítica da leitura. (Ezequiel Theodoro da Silva)
ESTUDO DE CASO: O PROBLEMA DE DONA AURÉLIA DAMACENO
Meu nome é Aurélia Damaceno. Tenho 24 anos e sou professora numa escola da periferia de Campinas. Depois de fazer cursos de supletivo em educação básica (fundamental e médio), consegui com muito custo me formar em letras numa faculdade de fim de semana. Foi um sufoco viajar de noite, pagar as mensalidades, ler um mundão de apostilas, mas, trabalhando aqui e ali, consegui vencer. Meu sonho sempre foi ser professora de Português, transformar para melhor o panorama deste injusto país. Mas confesso que não tem sido muito fácil equilibrar as minhas tarefas de mãe precoce, agora também de arrimo de família e de professora: meu tempo é mínimo para planejar aulas e a correria virou uma quadrada rotina na minha vida.
Minhas primeiras aulas foram um inferno. Tudo aquilo que aprendi rapidamente no meu curso de formação não batia em nada com a realidade da sala de aula. Adotei um livro didático de língua portuguesa, ou melhor, catei o primeiro que vi na minha frente e comecei a seguir as lições, repetindo-as direitinho, tim-tim por tim-tim: leitura em voz alta (salteada entre os alunos para pegar os desatenciosos...), depois questionário de compreensão e interpretação e depois a gloriosa redação. Viche, depois de um tempo, percebi que aqueles moleques e meninotas de 7ª ano tinham uma tremenda preguiça de ler, nunca faziam as lições de casa e começaram a dar de ombros quando eu cobrava as lições. Como promover a leitura num ambiente desses?
Eu mando abrir o livro na página tal, indico com o meu dedo aqueles que não prestam atenção e mando levantar-se para ler em voz alta. Se gaguejam ou cortam palavras, eu fico brava e grito que vou abaixar a nota. E logo em seguida, eu mando responder as perguntas do questionário e, para casa, fazer a redação pedida no livro. (É esse o jeito que eu vi vários professores fazerem quando eu fiz os meus supletivos e, confesso, acho que é o jeito certo e certeiro de ensinar a ler). Afinal, sem motivação, sem esforço, sem vontade de aprender, não há quem leia, não é mesmo?
Um aluno, ou melhor, um desses pestinhas de 7ª ano me perguntou um dia se não dava para variar um pouco a leitura.... Eu fiquei tão danada da vida que mandei ele para a diretoria por desrespeito ao meu modo de conduzir a leitura em classe. Onde já se viu um moleque questionar a didática do professor e ainda por cima dizer baixinho que aquele livro didático não tinha nada a ver!? Certamente os seus pais são analfabetos e dão de ombro para o que ele faz na escola. Haja paciência para aturar essa situação!
Um dia a supervisora me chamou e me perguntou se eu estava tendo problemas com o ensino da leitura bem naquele bendito 7ª ano. Viche, eu hein? Eu respondi que seguia religiosamente o livro didático e preparava os alunos para os testes de desempenho que vinham regularmente de Brasília e de São Paulo. E que o negócio era preparar a criançada para o ensino médio e depois para o vestibular. Sujeitinha chata essa supervisora!
Mas aqui na nossa intimidade posso dizer a você que nunca estudei nada de teoria da leitura, sabe! Nunca vi esse bicho de sete cabeças na faculdade - apenas lia rapidamente os textos das apostilas ou da xerox e copiava as ideias nas provas e pronto. Em verdade, posso dizer, não sei estabelecer objetivos de leitura e nunca fui atrás de textos fora do livro. Repito o que está no livro didático e me dou por satisfeita. Com esse minguado salário que a gente ganha hoje em dia é o máximo se pode fazer, não é mesmo?
Por vezes me pego perguntando se estou ensinando bem a leitura e a escrita, mas tenho um super medo de sair dos trilhos e não saber o que fazer depois. Com isso, imito os velhos professores que tenho, repito as lições do livro didático, não deixo os alunos falarem muito em classe e como avaliação comparo as respostas dos alunos com as do livro do professor, que acompanha o livro didático. E tudo continua como está com a leitura, com a escola e com o Brasil...
ANÁLISE DE DIEGO PEREIRA DA SILVA
A) Conselhos para melhorar o ensino de modo geral
1. Habituar-se à reflexão da própria prática pedagógica, dos preceitos teórico-metodológicos que lhe servem de base, quanto à sua pertinência à consecução dos objetivos educacionais estabelecidos e/ou propostos nos diversos níveis/ fases de elaboração curricular;
A sistematização e o monitoramento da ação docente, a começar pelo que cabe ao professor a esse respeito, são indispensáveis à educação escolar, porque somente através delas o projeto educativo é viabilizado.
2. Empenhar-se em realizar essa reflexão com os demais professores de sua escola, além do coordenador, especialmente nas reuniões pedagógicas, para a retroalimentação do planejamento, caso isso se mostre necessário (a exemplo de quando os alunos não significam a sua experiência de aprendizagem ou, ainda que o façam, revelem dificuldades em seu percurso educativo);
O saber da experiência é tão importante quanto quaisquer outros a ele complementares e, no caso da ação docente, imprime-lhe a materialidade necessária à compreensão e à realização do ensino e da aprendizagem enquanto exercícios de significação histórico-cultural.
3. Participar ativamente das ações de formação continuada empreendidas pela gestão escolar ou governamental; submetendo-as, também, à autorregulação (à semelhança daqueles professores que se comprometem em ler as obras disponibilizadas para esse fim pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola).
Como os paradigmas do conhecimento são substituíveis, em virtude da configurabilidade histórica da sociedade, é preciso conhecê-los, ainda que para reafirmá-los ou o oposto. Tarefa da qual os profissionais da educação, notadamente aqueles responsáveis pela sistematização e o monitoramento do ensino, não podem prescindir, sob pena de esvaziar a escola de seu sentido ideológico.
B) Conselhos para melhorar o ensino de leitura
1. A priori, apropriar-se, em sua formação continuada, das principais teorias de leitura, refletindo não somente sobre o seu impacto didático-pedagógico nas mais variadas situações de ensino e de aprendizagem, mas, pertinência, quanto à consecução dos objetivos educacionais estabelecidos no currículo em torno da atividade leitora;
Não se pode empreender aleatoriamente na escola a atividade de leitura, essa que “se faz presente em todos os níveis educacionais das sociedades letradas” (SILVA, 2011 [1980], p. 35) e se revela “um instrumento de acesso à cultura e de aquisição de experiências” (Ibid., p. 36). Ao menos não, sob pena de limitar a “experiência cultural do indivíduo [...] [,] [seu] comprometimento [...] [com a própria] existência” (Ibid., p. 37). De modo que requisitá-la continuamente ou inseri-la em suas múltiplas facetas, por si só, nas propostas da educação institucionalizada, não produz a transformação a ela creditada. Antes, é preciso concebê-la em um “conjunto de informações que orientem uma prática mais eficiente” (Ibid., p. 37), atentar para a “investigação sobre o ato de ler do aluno-leitor brasileiro” (Ibid., p. 38).
2. Não obstante, agir sobre o currículo, em sua fase de elaboração e execução na escola, no sentido de refleti-lo e, eventualmente, alterá-lo, ante o compromisso de um projeto de educação mais igualitário, inclusivo, em que pese a formação de uma sociedade do conhecimento, através do agenciamento crítico, subsidiado, por exemplo, pelas perspectivas da alfabetização e do letramento;
Numa época em que o olho eletrônico da televisão está aí no mundo ao redor, padronizando o conteúdo das informações, barrando as possibilidades de escolha do receptor, criando obstáculos ao aparecimento de indivíduos mais idiossincráticos, homogeneizando consciências e massificando a população, seria importante trazer à luz algumas funções da leitura dentro de um contexto educacional mais abrangente. [...]. (Ibid., 41-42)
[...] ler [...] [, nesse contexto, deve levar o indivíduo a] realmente participar mais crítica e ativamente da comunicação humana. (Ibid., p. 47).
[a experimentar] a saída-de-si ou um projeto de busca de novos significados. [...]. (Ibid., 81).
[Razão pela qual] a educação [...] [precisa ser] o projeto de conscientização do mundo; de hominização, mesmo porque homem e mundo são elementos inseparáveis. (Ibid., p. 90).
[Ou] a transformação do homem e do mundo [...] [;] [favorecendo, ao primeiro, a prática,] em sua vida [,] [d]o exercício dialético da libertação. [...]. (Ibid., p. 90).
[Daí,] a leitura crítica [...] [, enquanto condição para a educação libertadora, [...] para a verdadeira ação cultural que deve ser implementada nas escolas. [...]. (Ibid., p. 93).
3. Em tempo, dinamizar o currículo, no alcance que o professor pode atingir, através da interface entre o que os estudantes devem, precisam e esperam aprender.
A leitura [...] [não pode ser] colocada como um evento desligado da esfera humana [...]. (Ibid., p. 62).
[...] Ganho a minha existência, passo a existir, à medida em que me sinto dentro do mundo sígnico que me envolve, dentro das linguagens captadas pela minha percepção e levadas até a minha consciência. [...]. (Ibid., p. 76).
A leitura se manifesta, então, como a experiência resultante do trajeto seguido pela consciência do sujeito em seu projeto de desvelamento do texto. É essa mesma experiência (ou vivência dos horizontes desvelados através do texto) que vai permitir a emergência do ser leitor. [...]. (Ibid., p. 110).
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SILVA, Ezequiel Theodoro da. (1980). O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova pedagogia da leitura. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
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