ENTREVISTA: LER É UM ATO PERIGOSO
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Por que o senhor diz que o ato de ler é perigoso?
Essa minha afirmação deve ser entendida no contexto da sociedade brasileira ou seja, uma sociedade desigualmente dividida em termos do usufruto da sua riqueza econômica e simbólica. Nestes termos, para o poder constituído, sustentado pelas oligarquias nacionais, nunca foi e ainda não é interessante uma população leitora e crítica, pois ela poderia, através da leitura mais profunda da realidade social, conhecer os determinantes da pobreza e da miséria e assim colocar em risco aqueles que detêm os privilégios no país. Nestes termos, manter a maioria do nosso povo longe dos livros, não fundar bibliotecas, empobrecer o trabalho educativo, etc. não são fenômenos que surgem do acaso, mas decorrem de um programa muito bem calculado de manter um enorme contingente da população no universo da ignorância.
Como está a situação das bibliotecas públicas no Brasil?
Pelo tamanho do nosso país, para uma população que já passa dos 200 milhões, a situação das bibliotecas (púlicas, escolares, comunitárias, etc) situação é extremamente vergonhosa. Temos poucas bibliotecas e as pesquisas mostram que 50 por cento da pessoas pertencentes à Classe D não sabem o que é e nunca entraram numa biblioteca. Além da falta de bibliotecas e sua não capilarização no nosso território, muitos serviços biblioteconômicos estão jogados à própria sorte, não tendo o devido apoio dos governos para atender de forma consequente os possíveis leitores. Uma outra questão diz respeito ao aumento da produção editorial e os espaços existentes para acomodar os acervos nas bibliotecas existentes - aqui o problema atinge as raias do absurdo, pois a grande maioria das bibliotecas brasileiras se "ajeita" em prédios pequenos, incapazes de guardar os seus acervos. Enfim, estamos muito aquém do necessário e a dívida dos governos para com as bibliotecas públicas é incomensurável.
Como está a formação dos bibliotecários e como deveria ser?
Trabalhei no Curso de Pós Graduação em Biblioteconomia da PUCCAMP em épocas passadas e ali eu já sentia os desvios no processo de formação dos bibliotecários. Ao invés de uma formação voltada para o atendimento das necessidades de leitura e atualização da maioria dos brasileiros, ela se dirigia muito mais para as questões relacionadas às novas tecnologias da comunicação e para o trabalho em empresas ou universidades. Com a introdução das chamadas ciências da informação, essa formação parece ter entrado num redemoinho de confusões, o que secundarizou a área da biblioteconomia e pulverizou as funções do bibliotecário. Entendo e defendo que sem recursos humanos bem formados, sem bibliotecários, nunca chegaremos a um patamar superior de leitura, mas é necessário que os cursos de formação configurem esquemas de formação voltados para as necessidades concretas da nossa população, incluindo-se aí a consciência política e cidadã.
Como envolver os professores nas práticas de leituras?
Sem dúvida que a formação básica e continuada deve ser a base para esse envolvimento. Só que hoje em dia essas duas formações foram extremamente aligeiradas, para não dizer banalizadas por todo o Brasil. A melhor receita para envolver os professores nas práticas de leitura é fazer eles próprios serem leitores, o que infelizmente nem sempre acontece. Além disso, sabemos que existem condições para que uma pessoa seja leitora, como ter tempo disponível para ler, ter dinheiro para comprar livros e fazer assinaturas de revistas, jornais, etc, ter um espaço para poder fazer as leituras, ter uma comunidade com quem conversar sobre as leituras feitas e assim por diante. Considerando a situação econômica encontrada junto ao magistério brasileiro, e fácil perceber que essas condições não conseguem ser preenchidas por uma fatia considerável de professores. É muito difícil, senão impossível, formar um leitor com professores que não tenham nenhum entusiasmo pelas escritas e que não pratiquem a leitura em suas vidas.
E os pais, como podem participar desse processo?
Sendo leitores e lendo continuamente para e com seus filhos. Formando uma comunidade em que os livros e os textos em geral sejam tomados como "valor", como uma necessidade imprescindível à vida em família . Um novo leitor é sempre uma produção de outros leitores, de uma rede de leitura que assume os textos como fatores de conhecimento, de crítica, de debate e assim por diante. É importante que os pais não tornem o balde das orientações de leitura em cima dos professores e bibliotecários; pelo contrário, é necessário que os pais construam com seus filhos um ambiente para leitura em casa, com proximidade a uma variedade de textos (livros, revistas, CD's, DVD's, etc).
Como estimular a leitura desde a infância?
Lendo para, lendo com e conversando muito a respeito das ideias construídas pelas leituras.
O senhor sempre foi um leitor? Como foi seu início, alguém incentivou? O que leu na infância?
Meu pai e meu irmão mais velho eram leitores inveterados e me passaram o "vírus" - eles me incentivaram bastante ao longo da minha infância e adolescência. Somente vê-los lendo já era para mim um grande estímulo; além disso, eles compravam e traziam coleções de livros para encher as estandes de minha casa, o que colocava os objetos de leitura ao alcance das minhas mãos. Por outro lado, até aos cinco ou seis anos de idade, minha mãe, que era costureira, me contou oralmente muitos contos de fada, o que instigava a minha imaginação, a minha fantasia de criança. Depois que fui alfabetizado na escola e ganhei autonomia de voo em leitura, li praticamente de tudo: figurinos de moda da minha mãe, gibis, coleções de romances históricos, poemas escolares e me recordo bem do "Rosinha, minha canoa" e "Meu pé de laranja lima", de José Mauro de Vasconcelos, dois livros que residem na minha memória até hoje.
Quais são seus autores preferidos?
Tenho muitos, mas hoje em dia, na esfera da ficção, ando lendo e apreciando as obras de Isabel Alliende, Dan Brown, Mario Vargas Lhosa e José Saramago.
O sr. falou que estimular a leitura deveria ser encarada como uma performance. O que isso quer dizer?
Como uma performance teatral, diga-se. Essa analogia foi feita por Aidan Chambers, professor inglês, que carrega a dinâmica da leitura para a área da dramaturgia no livro "Tell me: children read and talk" (Lockwood: The Timble Press, 1993). Basicamente, a leitura é uma síntese de várias cenas interrelacionadas, onde o leitor é tomado como o dramaturgo (co-autor do texto), diretor (intérprete do texto), ator (executante/performer do texto), platéia (respondente ativo do texto) e crítico (comentarista do texto), cabendo ao mediador de leitura dinamizar essas cenas ao longo dos percursos de leitura de um grupo.
Como deve ser um acervo de uma biblioteca pública?
Numa palavra, sempre voltado às necessidades e aos interesses da sua comunidade de leitores. Nunca defendi a ideia de um imenso acervo para se exibir ou vangloriar, mas sim de um espaço democrático encarnado na vida dos leitores, onde os mesmos possam não somente ler, mas partilhar as ideias produzidas a partir de suas leituras. Longe de mim o depósito ou mesmo o monumento dos livros... a biblioteca deve ter a cara dos seus frequentadores - existir para e por eles.
O sr. acha que os governos não estão preocupados com a questão da formação de leitores?
Há uma certa sazonalidade nesta esfera, com algumas mostras de boa vontade em alguns governos. Entretanto, pesando bem na balança, creio que o descaso tem sido bem maior do que a preocupação - preocupação transformada em políticas públicas para atualizar e melhorar as práticas de leitura no nosso país. Os índices atuais de leitura no Brasil, conforme uma multiplicidade de pesquisas, apontam claramente para o descaso e, consequentemente, para a nossa vergonhosa situação em 2013, terceiro milênio, na era da sociedade da informação e do conhecimento. Lembrar que o ato de ler, sob certos aspectos, é um ato perigoso, daí que formar leitores não seja lá uma preocupação muito intensa junto aos detentores do poder.
Muitas vezes os livros adquiridos para bibliotecas não são os necessários. Como deveria ser esse processo?
A seleção e aquisição de obras para formar os acervos das bibliotecas devem ser conduzidas a partir das necessidades dos usuários que a frequentam. Daí a necessidade de o bibliotecário possuir uma intimidade com comunidade de leitores que dinamiza a sua biblioteca. As distribuições de livros que vêm de cima para baixo geralmente não levam em conta essas necessidades e simplesmente abarrotam os espaços, sem que esses livros encontrem vida nas leituras feitas pelos leitores. Quando esta questão (distribuição gratuita, de cima para baixo) é levada para o âmbito das escolas, ela se transforma num verdadeiro crime - sabemos de casos em que os livros chegam, permanecem fechados em suas caixas de transporte e depois de certo tempo vão diretamente para o lixo!
O prazer da leitura nasce com a pessoa ou é aprendido?
Não sou adepto de qualquer tipo de inatismo; para mim o homem é produto do seu meio e faz a sua existência com os demais sujeitos que vivem nesse meio. Portanto, prazer, gosto, amor pela leitura - tudo isso é aprendido socialmente.
Quais as práticas que o senhor aconselha para serem utilizadas em bibliotecas ou nas salas de aula para despertar o amor pela leitura?
Abrir espaço para ler e conversar sobre os textos lidos. Parece brincadeira, mas essas duas práticas são geralmente substituídas por uma parafernália de procedimentos postiços que não levam a absolutamente nada e que escondem a essência do ato de ler.
Um bom mediador de leitura é aquele que...
É um leitor, que se apresenta como leitor e projeta essa imagem, que lê com/para os seus interlocutores e organiza rodas de conversas sobre os textos lidos. É aquele que sabe que a leitura é, no fundo, uma relação constituída socialmente e que, para se manter e se enraizar, depende dos gestos encontrados no seio de uma comunidade. Não é e nem deve ser um "super homem", mas um leitor preocupado em gerar outros leitores através da organização de situações de leitura.
Como o senhor avalia o papel das entidades do livro e da leitura no processo de formação de leitores?
Respeito todas aquelas que não se venderam ao mercado e nem cooptaram com os governos, tendo conseguido manter o compromisso de lutar por um Brasil de leitores. Leitores de todas as escritas: manuscrita, impressa e virtual.
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