ENTREVISTA: LEITURA LITERÁRIA & RETRATOS DA LEITURA

 ENTREVISTA PARA FUNDAÇÃO VOTORANTIM, abril de 2011


Qual o papel da leitura literária na formação do indivíduo e de sua visão de mundo?
A melhor reflexão que conheço sobre a importância da leitura literária para os cidadãos vem do Professor Antônio Cândido. Em vários dos seus escritos, esse grande intelectual brasileiro coloca a fruição literária como um bem incompressível, ou seja, um bem essencial, imprescindível à vida dos homens. A partir de uma concepção bem ampla e abrangente de literatura, Antonio Cândido mostra que nós, seres humanos, históricos e seres de cultura, precisamos de momentos de devaneio, sonho, imaginação em nossa existência e que as obras literárias, exigindo a reescrita do texto pela fantasia do leitor, nos conduzem aos universos mais inusitados, sem fronteiras, reveladores da complexidade da vida. Em suma, pelo olhar e pelas mãos dos escritores somos levados a movimentar a nossa imaginação criadora, a chacoalhar os nossos sentimentos, e até mesmo a construir outras realidades possíveis para a existência dos homens. Nestes termos, vivendo uma época em que a padronização imposta pelo mercado nos coloca numa camisa de força, igualando quase tudo, a frequentação às obras de arte pode significar uma possibilidade de pensar as nossas atitudes, os nossos valores e os nossos comportamentos de uma maneira diferente. Ninguém sai imune da leitura de um bom romance.

De modo geral, como você avalia as políticas públicas brasileiras voltadas para a formação de leitores? Que barreiras precisam ser superadas?
É imensa, gigantesca a dívida social dos governos para com a leitura. Infelizmente, não constituímos, não implantamos em tempos passados uma infraestrutura condigna para promover a formação de leitores em nosso país. Chegamos em 2011, terceiro milênio, com uma paisagem vergonhosa no que diz respeito a ações concretas para incentivar as práticas de leitura. Estamos correndo atrás do tempo nesta esfera, mas, infelizmente, reproduzindo ideias, programas e projetos que não levam a uma transformação, para melhor, do triste quadro que se apresenta. Compramos livros para escolas sem bibliotecas e sem profissionais especializados para cuidar das obras e organizar projetos consequentes. Compramos computadores para escolas que não possui no seu quadro administrativo pessoal técnico para os serviços de apoio e manutenção. Eu afirmaria que temos uma política de aquisição e distribuição de livros, que vem custando uma nota preta aos nossos bolsos de contribuintes, mas não temos uma política de leitura - com isso, a gangorra pende para um só lado, deixando os mediadores de leitura a ver navios, a começar do professor, quase sempre explorado no seu trabalho, sem pessoal coadjuvante para enriquecer o ensino e muitas vezes se colocando como "não-leitor". A principal barreira a ser vencida ou superada é começar a ver os problemas já há muito tempo denunciados e começar a inverter o foco dos altos investimentos que, vai ano vem ano, não muda. Só cego não vê - e as pesquisas estão aí para mostrar, que a leitura patina no mesmo lugar, sem que os avanços sejam percebidos na linha do tempo.

Você destacaria alguma política pública para a leitura em outros países da América Latina que pudesse ser tomada como modelo?
A Colômbia, mesmo com todos os problemas que enfrenta (guerrilha, narcotráfico, etc) vem conseguindo resultados fantásticos na esfera da promoção da leitura. Em verdade, esse país colhe agora os investimentos acertados que fez na área de implantação de bibliotecas e ações diversificadas em favor dos leitores. É um exemplo de que uma política voltada à promoção da leitura tem de ser contínua no tempo, colaborativa entre as entidades de fomento e realista naquilo que propõe e almeja. O Uruguai também tenta acertar através de um upgrading tecnológico na sua rede escolar, investindo forte em computadores e infovias; se conseguir manter o rumo, é bastante provável que também colha bons frutos na esfera da educação dos leitores e promoção de hábitos de leitura.

A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil revelou que 75% dos brasileiros não frequentam bibliotecas. Ainda, percebeu-se que o problema da leitura no país é, em primeiro lugar, a falta de hábito, não a falta de acesso. Como combater isso?
Essa pesquisa apenas revelou o óbvio e ululante, pois a nossa rede de bibliotecas (e outros centros de mediação de leitura) é praticamente inexistente, nula e/ou ultrapassada, e as raras exceções apenas confirmam a regra. Quer dizer, não temos uma rede capilarizada para a dinamização das diferentes configurações da escrita. No meu ponto de vista, o resultado da pesquisa é altamente questionável, pois sem acesso, sem frequentação, sem prática recorrente não há como falar em desenvolvimento de hábitos. A Argentina iniciou a implantação de uma rede de bibliotecas populares no final do século 19 junto com um programa educacional que tem como centro os diferentes tipos de leitura e hoje sabemos que é, sem dúvida, uma sociedade onde os escritos têm valor e são democraticamente colocados à disposição dos indivíduos, seja em livrarias exemplares, seja em excelentes bibliotecas enraizadas por todo o país. Portanto, o combate precisa levar em conta aquilo que inexiste no Brasil e que é altamente necessário: infraestrutura decente e condigna para que as pessoas possam ler de verdade.

A mesma pesquisa também demonstrou que, pela primeira vez, o professor ultrapassou a figura da mãe como principal motivador da leitura. Qual o papel das escolas na formação do hábito de leitura?
Hoje, no Brasil, as mães também atingiram a condição de trabalhadoras. A antiga Amélia, doméstica que tomava conta da casa, cozinhava e contava histórias para os filhos está desaparecendo à luz das transformações da sociedade brasileira. Por isso mesmo, a escola passou a receber novas funções - funções estas que se colocavam anteriormente na esfera da educação familiar ou mais centradas na mãe da criança. E isto não ocorre na formação do hábito de leitura: noções de higiene, de alimentação, de valores de convivência, etc passaram para a alçada da escola e mais especificamente para a condução dos professores. Agora pergunto: como construir o gosto pela leitura junto aos estudantes com a escola que está aí? Com o professor oprimido que está aí? Com um currículo esfacelado e pragmático que está ai? Quer dizer, o repasse de obrigações e responsabilidades da família para as escolas apenas nos faz pensar no real enfraquecimento da educação das crianças e jovens brasileiros nestes tempos. A formação de um leitor é tarefa extremamente complexa e exige ações complementares, colaborativas e complexas, mas, se consideramos o dado desvelado por essa pesquisa, vamos continuar mancando com uma perna só, com possibilidade de cair na trajetória. Coitado do professor, sem dúvida um sério candidato a super-homem!


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