ARTIGO: OUTRAS LEITURAS FUNDAMENTAIS À DOCÊNCIA

Quando se fala em leitura, imediatamente - e quase sempre - aparece em nossa mente uma imagem relacionada à leitura de "textos escritos" (manuscritos, impressos e/ou virtuais). Nada há de errado nisto, pois essa imagem decorre da prevalência - e insistência - dos discursos a que fomos submetidos socialmente e dos tipos de práticas, tidas como as únicas de leitura, que vivenciamos nas escolas em que estudamos e/ou que interiorizamos outras situações de aprendizagem. Outrossim, a hegemonia do livro, ao longo de tantos séculos, como o principal veículo do conhecimento contribuiu para com a consolidação da ideia de quer LER é, necessariamente, LER LIVROS. Dessa forma e em razão da força dessa imagem, até mesmo a leitura de outros veículos que circulam como suportes da escrita (revista, jornal, email, bilhete, carta, legenda de filmes, relatório, etc.) é tida como subsidiária, como um apêndice da ideia maior, qual seja a de que um leitor, para ser assim definido ou classificado, é um ser que lê unicamente livros.

Não resta dúvida que a prática e a convivência com livros é extremamente importante para a vida de um cidadão, mas restringir ou afunilar a leitura para esse único tipo de interação, considero uma posição reducionista e, porque não dizer, totalmente fora da realidade, principalmente frente aos avanços midiáticos e aos dinâmicos cruzamentos ou hibridismos sígnicos da atualidade. Quer dizer, as representações de mundo e de realidade do presente ocorrem através de uma multiplicidade de veículos ou meios, que não somente o livro e cada qual com as suas características de uso e manejo. Ser leitor ou praticar a leitura, portanto, é situar-se criticamente e ecleticamente frente a todos veículos e/ou suportes com ocorrência da linguagem escrita, do livro à tela de um telefone celular.

Além disso, o conceito de leitura precisa ser alargado no sentido de abarcar outros gestos humanos que produzem sentido em determinadas situações e/ou circunstâncias sociais. Assim, por exemplo, ainda tendo como base aquilo que somente nos entra pelos olhos, Paulo Freire fala da "leitura de mundo" - certamente um mundo onde os fenômenos precisam também ser lidos como "textos" ou então precisam de texto(s) do interior de um leitor para serem passíveis-possíveis de serem interpretados e compreendidos. Lembrando que pensamento e linguagem são dois lados de uma mesma moeda, quando lemos a natureza, uma paisagem, as nuvens do céu, etc., estamos necessariamente traduzindo a nossa percepção linguisticamente com uma fala interior ou então como algum tipo de linguagem que expresse as nossas sensações e percepções daquela leitura.

LEITURA DE SI E DO OUTRO

Dentre as muitas leituras que fazemos dos entes presentes em nosso cotidiano, colocam-se a leitura de si e a leitura do outro. Esses dois tipos de leitura são fundamentais ao trabalho do professor mesmo porque o trabalho pedagógico, tendo o diálogo pedagógico como fundamento ou motor, necessita de uma sensibilidade a respeito de si mesmo (do professor para com ele mesmo, do seu preparo, das suas limitações, etc.) e uma sensibilidade para o outro com quem se convive no horizonte de práticas de ensino e aprendizagem. Além disso, nunca é demais lembrar que o professor é um profissional que toma várias decisões para que os seus alunos se movimentem na direção proposta pelas atividades de ensino, assimilando conteúdos, esmerando condutas, internalizando valores, pesquisando fontes, etc.

Ler sociologicamente, antropologicamente e psicologicamente os seus grupos de estudantes me parece uma tarefa crucial para a conduta docente. Como tomar decisões sobre o quê ensinar, para quem ensinar, como sequenciar as atividades, etc., sem que essa leitura ou essas leituras sejam objetivamente feitas antes e durante o transcurso das aulas? Sem um conhecimento, isto é, sem uma leitura cada vez mais sensível dos potenciais e das necessidades dos estudantes, certamente as decisões de ensino serão tomadas para pessoas sem rosto, sem repertório e sem interesses, ocas e passíveis de engolir qualquer proposta que se lhes apresente. Além disso, na sua posição de "avaliador", expectativa que se faz presente no âmbito do magistério, a leitura dos estudantes, de suas produções (orais, escritas, imagéticas, etc.), de suas atitudes e de seus comportamentos assume uma posição de extrema importância, principalmente quando se pensa em avanço cognitivo, atitudinal, etc.

E o professor precisa ser "lido" também. Qual a percepção que o grupo de alunos tem do professor? Como esse professor e a disciplina por ele ensinada são percebidos no conjunto da escola? Qual a imagem que a comunidade de pais formou desse professor? Respostas a estas questões envolvem, necessariamente, gestos e reações de leitura provindos de diferentes interlocutores. Neste caso, ainda, o professor deve assumir uma posição de receptividade e abertura para essas reações (feedback de leituras de convivência) de modo que possa - ele próprio - se analisar enquanto pessoa e profissional, responsável pelo crescimento de outras pessoas.

LEITURA DO AMBIENTE E DA SITUAÇÃO

Ambiente pesado num encontro ou numa reunião? Atmosfera improdutiva, carregada? Situação intolerável? Bagunça descontrolada? Eis algumas situações para as quais a sensibilidade dos leitores envolvido se coloca como imprescindível. De fato, se a atmosfera não for lida e aclarada por aqueles que estão se comunicando, pode ocorrer vários tipos de problemas: silenciamento, embotamento, agressividade, indisciplina, fuga, esquiva, etc. Nunca é demais lembrar que nas atmosferas de interlocução pode sobressair a confiança, facilitando o diálogo, ou o seu contrário, o risco, dificultando ou bloqueando o diálogo entre as pessoas.

Lembrando que as salas de aula são também contextos que necessariamente conduzem à comunicação (professor-alunos; alunos-alunos; principalmente), a leitura desse contexto pelo professor assume importância vital para os percursos de ensino-aprendizagem. Daí o extremo cuidado que o professor deve ter, via leituras constantes das situações, das atmosferas preponderantes em suas salas de aula. E nunca é demais lembrar que, observando a presença dos fatores bloqueadores do risco (censura, indisciplina, autoritarismo, bullying, etc.), o professor pode, pela alteridade, paralisar essas situações a fim de refletir sobre o que está se passando dentro delas, as razões, as justificativas, as soluções, etc. Portanto, estar sempre "antenado", ou seja, estar sempre pronto para ler as situações e as relações de ensino pode facilitar, em muito, o percurso a trilhar com um grupo de estudantes.

RESUMINDO ENTÃO...

Não que o professor deva ser um leitor "super homem" ou "mulher maravilha" na medida em que ele/ela é também determinado por um conjunto complexo de circunstâncias, principalmente aquelas relacionadas às múltiplas funções que é levado a exercer socialmente, os baixos salários, a precária infraestrutura da escola, etc.  Entretanto, nos limites do possível, considero importante um conhecimento e um aprimoramento das suas diferentes funções de leitor na construção de sua história como professor/a. Desprezar determinadas sensibilidades e habilidades para o quadro das práticas diferenciadas de leitura pode resultar em pobreza de atuação, quando não na sua própria ruína ou desgraça.



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