ARTIGO: LEITURA ENQUANTO TRANSUBSTANCIAÇÃO

 "No trânsito entre o escritor, o livro e o leitor, acontece aquilo a que os teólogos medievais davam o nome de 'transubstanciação': transformação da substância. O pão e o vinho, tocados pela palavra, deixam de ser pão e vinho e tornam-se substância que as palavras dizem. E o verbo se fez carne." - Rubem Alves (Manual de antropofagia I. In Jornal Correio Popular, Campinas, 11/08/2013, p. C2.)



Escrever é uma forma de se deixar, de se fazer renascer pela leitura. Os textos que escrevemos, caso não desapareçam nos diferentes suportes existentes, são pedaços de nós mesmos que oferecemos para serem "comidos" pelos que nos leem em momento posterior. E sendo comidos ou devorados, quer dizer "lidos" e lembrados, continuaremos a viver mesmo depois de seguirmos, pela morte, para outras esferas. 

Nesse horizonte de reflexão, é interessante observarmos que alguns dos atuais suportes de leitura, principalmente os de natureza virtual, não permitem que a leitura-transubstanciação aconteça. Falo por exemplo, dos textos veiculados em e-mails, dos fugazes textos postados no Facebook e dos mini textos colocados no Twitter. Eles nascem e morrem veloz e instantaneamente, não deixando marcas ou rastros que possam constituir uma memória. A menos que arquivados pelo leitor, tais textos "passam" na forma de avalanches, sem que o leitor tenha oportunidade ou tempo de os "comer", "devorar". O "blog", tomado como um diário pessoal online e resultando no arquivamento de textos em sequência, abre caminho para uma transubstanciação mais intensa por parte dos leitores. 

Não resta dúvida que a escrita impressa e a manuscrita (não virtuais) também apresentam esse aspecto de fugacidade, mesmo tendo o papel como suporte. Os textos do jornal, por exemplo, existem por um único dia, a menos que recortados ou arquivados para consultas futuras. Mesma coisa com um bilhete que, depois de lido, é amassado e jogado fora. Entretanto, parece que a escrita impressa estabelece uma maior cumplicidade com o leitor e se apresenta como uma garantia de guardar as mensagens por mais tempo - não é à toda que determinados textos oriundos da internet são imediatamente impressos como uma forma mais garantida de não perder o seu teor no tempo.

Cabe dizer ainda que a forma ou configuração do texto, a partir de maior ou menor artesanato da linguagem por parte do escritor, também tem um efeito sobre a transubstanciação realizada pelos leitores. Quer dizer, os textos variam muito em termos do envolvimento, da motivação, da participação, etc. dos leitores. Determinados textos são tão intensos no momento de sua transubstanciação, que se enraízam na mente dos leitores para sempre - daí, inclusive, a nossa paixão por determinados escritores (cujos pedaços carregamos conosco) e o ódio por outros (cujos pedaços não conseguem ficar conosco e evitamos para sempre comer ou degustar). 

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