SÍNTESE: NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

 João Victor Fiorot

Imagine que, ao conduzir uma embarcação em alto mar, o marinheiro João sabe exatamente qual é o seu destino. Entretanto, deixou, por descuido, seus materiais de navegação (mapa, bússola, etc.) expostos e um vento impetuoso lançou tudo ao mar. Nosso marinheiro se viu, então, em meio a uma paisagem estonteante, contudo, terá muita dificuldade para navegar sem nenhuma referência. Alcançar o local desejado torna-se então praticamente impossível da mesma forma que o é retornar ao ponto de partida. Dessa forma, resta apenas errar mar adentro até encontrar algo familiar.

Outrossim, navegar na internet sem instrumentos de referência é um ato fadado à desorientação. Quem assume o timão nessas condições não tardará a alcançar a frustração de não chegar a lugar algum. Com isso em mente, pensemos no ensino de leitura em contexto cibercultural.

O caminho pretendido pelos alunos, supõe-se, é dominar uma habilidade, um conteúdo. Aprender algo. Eles estão viajando por um trajeto do qual ainda não são totalmente familiares e necessitam de um guia. No entanto, ao professor (o guia suposto), não deve jamais ocorrer que a atenção do aluno esteja sempre totalmente dedicada ao trajeto. É preciso ajustá-la e fazê-lo de novo e de novo (muitas vezes, de maneira repetida durante a mesma aula), para evitar um desvio. Mas como tirar os olhos da estonteante paisagem? Ou ainda, deixando as ilustrações de lado, como convencer o aluno que já navega deliberadamente na internet de que a dedicação de sua atenção especificamente para isso ou aquilo pode dar um retorno tão, ou mais, prazeroso do que as horas passadas à deriva?

 

Fonte: https://unsplash.com/photos/keLEfEdxXYc

 

Assim, é preciso dar um passo atrás e compreender os alunos já como leitores dos meios dos quais fazem parte, mas com potencialidades ainda por serem exploradas, haja vista que a leitura não é meramente uma prática estática de decodificação de símbolos. Existe um universo significativo e plural do ato de ler que não começa no século XXI.

A história nos mostra que o desenvolvimento da leitura através dos tempos não se inicia com o livro da Imprensa de Gutenberg, mas sim com os rolos e pergaminhos atrelados a leituras públicas, principalmente em cerimônias religiosas. O papel social da leitura bem como seus gestos sofreram várias alterações a partir de então, mas, sem dúvida, a possibilidade de existirem muitas cópias de um mesmo texto sendo editado e circulando é uma das mais importantes. Isso acabaria por criar um mercado com o qual escritores, casas de publicação e outros profissionais das páginas e letras poderiam se beneficiar. Ainda nesse contexto, poucos eram os estímulos que poderiam fazer um ávido leitor tirar os olhos de suas páginas, mas isso estava por mudar.

Com a Revolução Industrial, o livro assume de vez o caráter de objeto de consumo. O suporte passa a se tornar paulatinamente um bem de domínio individual saindo de vez dos templos e salas de leitura das bibliotecas para adentrar a vida do homem na multidão do centro urbano moderno, movimentado e cheio de informações visuais conflitantes e caóticas. Nesse cenário, ler é, ao mesmo tempo, um ato contraintuitivo de, em vez de prestar atenção aos diversos estímulos em derredor, despencando brilhantes ante a visão, dedicar-se tão somente às palavras frente aos olhos impingidas nas páginas, e uma tentativa constante de compreender os sinais do ambiente para interagir com ele. O indivíduo que assumia o papel de leitor, durante as primeiras décadas do século XX, transitava entre a leitura movente dos sinais, placas, notícias, imprensa, publicidade e a contemplativa das páginas impressas. Deslizamentos e sobreposições, como afirma Roger Chartier.


Caminhante Sobre o Mar 
de Névoa.
Fonte: http://bit.do/caminhante


Em suma, os leitores da
modernidade e da pós-modernidade parecem ter a mesma pré-disposição para perderem o foco, porém, com agravantes diferentes. O primeiro trafegava pelo turbilhão promovido pela urbanização e industrialização enquanto elas aconteciam, o capitalismo ia vendendo e se vendendo através da propaganda – o texto tinha de ser rápido, atrativo e convincente; o segundo, acumula as questões modernas, e ainda participa de uma comunidade global, na qual foi inserido forçosamente, ou nela nasceu e foi criado, as distâncias foram encurtadas graças à virtualidade e ele é atrativamente seduzido, a todo o tempo, para, não apenas consumir, mas produzir e promover os hipertextos que aparecem, desaparecem, se multiplicam e transfiguram no labirinto rizomático da rede mundial de computadores.


Já nos anos finais do século passado e início deste século XXI, o texto, vivo tal qual a linguagem, descorporifica-se e deixa de estar aninhado apenas em suportes físicos, mas se digitaliza e aparece em telas de todos os formatos e tamanhos. Leitura, pois, é palavra que ganha outros contornos. O texto agora é também hiper e junto das letras e algarismos, conhecidos antigos, ajuntam-se imagens, vídeos, animações, sons, 
gifs, hiperlinks, e o que mais for possível de ser digitalizado (ou criado já de maneira digital). Não se segue mais a cartilha da leitura de uma página inteira por vez para então virá-la; devemos rolar para baixo e para cima, clicar, arrastar, avançar, retroceder, buscar na página, responder, compartilhar e seguir comandos inteiramente novos para o vocabulário da leitura tradicional. De fato, navegar no ciberespaço exige a elaboração de um cartograma; entretanto, para essa viagem, não existem trajetos ou destinos preestabelecidos: cada transeunte virtual, com suas habilidades e limitações, deverá percorrer os próprios caminhos a sua maneira. É uma liberdade tomada de maneira igualmente assustadora e automática, respectivamente, por navegantes errantes e previdentes. 

Posto esse cenário, o aluno precisa entender que está inserido em um mundo totalmente perpassado por textos ambivalentes, isto é, eles podem ser fonte de informação e conhecimento, tendo efeito enriquecedor, mas também podem ser diversionistas e fonte de desinformação. Fazer a leitura crítica, não apenas dos textos em si, mas dos meios onde são publicados, e nutrir a capacidade de elencar informações e ambientes seguros no ciberespaço passa a ser, não apenas uma questão de ensino de leitura para a Escola, mas também de responsabilidade social.

É dar a bússola que o aluno precisa para navegar aproveitando a paisagem, sem perder de vista o destino, seja ele qual for.

Referências

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Editora UNESP, 1998.

SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004.


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Comentários

  1. Excelente sua escrita João! Gostei também das lindas e bem escolhidas imagens. Parabéns!

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    1. Obrigado, Telma. Espero ter colaborado para a discussão em questão.

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  2. João, muito bom o seu texto. A forma como você construiu o texto tendo uma ilustração como guia, traz uma leveza ao texto! E as imagens também só contribuíram!

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    1. Grato, Érika! Eu sou totalmente adepto do "quer que eu desenhe" como primeiro recurso em uma explicação, inclusive ao usar as palavras. Seu comentário me deixou bastante feliz.

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  3. Lindo texto. A organização e escrita fantástica. Meus parabéns! Adorei!

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    1. Obrigadão, José! Um prazer ter contado com a sua leitura e comentário.

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  4. João Fiorot, parabéns pelo texto. Com estilo particular e com leveza a mensagem nos é dada. Obrigado!

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    1. Obrigado, professor! Fico feliz de ter alcançado essa leveza, era um objetivo da escrita, tanto quanto a mensagem.

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  5. João, muito enriquecedor o seu texto! Parabéns pela organização e pela escrita!

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    1. Que nada, Ana. Obrigado a você pela leitura atenciosa e pelo comentário.

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  6. Lindo texto e muito reflexivo! Parabéns João!

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    1. Obrigado pelos adjetivos, Flávio. Fico satisfeito que tenha gostado e grato pelo comentário.

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  7. E a leitura foi uma viagem muito agradável... muito bom João!!!!! Achei o texto super interessante até mesmo para trabalhar com os professores na semana de planejamento. Para trazer discussões sobre o uso do ciberespaço, considerando a orientação por parte do professor. Parabéns!!!!

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    1. Que ótimo ler um comentário como esse, Michele. Fico grato de verdade pela leitura e pelo comentário. Espero que o compartilhamento desta leitura traga impactos positivos.

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  8. Que texto maravilhoso João, atual e necessário no ambiente escolar. Parabéns!!!

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    1. Obrigado, Sabrina. É um prazer imenso compartilhar essas ideias com colegas de trabalho.

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  9. Que texto! A leitura dessas linhas nos faz pensar no caminho, no percurso, nas decisões, nos meios de como se deslocar no conhecimento. Mas além disso, do homem que se desenvolve em qualquer época e se coloca nos desafios de seu tempo de aprender e ser protagonista ou não de apenas apreciar a paisagem, que alías é o mais cômodo. O ciberspaço amplificou os contatos humanos para além das fronteiras de um país e produziu uma tendência massificadora para as culuras não dominantes ou mesmo excluídas dos processos técnicos, e no máximo vão à reboque nesse trajeto. Novamente, que bom te ler. Abraço.

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    1. Grato demais pela leitura epelo comentário enriquecedor, Fábio! Que prazer ter esse comentário aqui 😉

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  10. Parabéns João, fast-food para o cérebro. ashashahs

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  11. Respostas
    1. Gratidão pelo seu comentário, Andréa! Fico feliz que tenha gostado do texto.

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