CAFÉ COM CANCLINI


CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas – estratégias para entrar e sair da modernidade. (4ª edição, 1ª reimpressão) São Paulo: Edusp, 2006.

Mellina Silva

A fumaça das xícaras de café subia. Em uma mesa de canto da padaria, dois amigos conversavam animadamente sobre seus trabalhos, projetos futuros e hobbies. Os mais variados assuntos foram canalizados para um único: política.
Um deles muito convencido de sua posição disse ao outro:
- É uma palhaçada toda esta história de minorias, diferenças e blábláblá. Esta miscigenação acabou com tudo! Hoje em dia está tudo misturado!
O outro responde:
- Mas, qual é a palhaçada nisso? Eu adoro essa mistura, essa heterogeneidade, isso é Brasil! Essa mescla de um com o outro, de culto e sagrado com diabólico e popular...
O amigo que estava indignado torceu o lábio para o lado, deu uma bicada no café quente é retrucou:
- É! Esse Brasilzão é uma bagunça só! Já não se acha nada puro, nada original, tudo é uma cópia ou uma coisa com outra! Você vê, nem mulher hoje em dia se acha mais, pois você fica em dúvida se é homem ou mulher, ou outra coisa...
O amigo riu divertindo-se com a posição conservadora do outro e retalhou:
- Ah! Pare com isso! Deixa de ser caxias! Vai dizer que você não gosta de feijoada, de sair da igreja imponente e dar de cara com uma pichação: “livre-se de suas amarras” e por aí afora...
O amigo sorriu por um momento, mas continuou firme:
- Avá! Eu gosto de tudo isso sim! Só acho que em toda mistura deve haver algo que se perde, por exemplo: eu consigo comprar um objeto indígena produzido na China. Olha isso! Na China!
- Isso é a globalização, é a sociedade da informação, é a ruptura de uma única cultura, é o colonizado entrando na zona do colonizador! É a cultura para todos e de todos, assim todo mundo tem acesso e não dependemos mais de um único meio, da televisão ou rádio. É a expansão de diferentes gêneros, produtos, artes. Hibridação é o nome.
O garçom passa perto da mesa de canto onde os amigos estão sentados:
- Por favor, mais 2 cafés. Duplos. E continuam a discussão amistosa. – Mas, meu caro, você há de concordar comigo que essa hibridação resulta em tudo que você falou e mais um pouco! Toda miscelânea não acontece de forma passiva ou como um diálogo respeitoso, é um choque, um embate! E, outra coisa, é o consumo desenfreado de todo tipo de arte, com certeza somos levados a consumir um modelo, mas não sabemos. Consumimos de um tudo! Alguém está levando!
- O embate que você diz cria outras e novas maneiras de cultura, a cultura é ressignificada. E, quanto ao mercado, acontece uma resistência da própria cultura, menor que o mercado, claro!
- Pois bem, o papo está muito bom, mas você não irá me convencer e nem eu o farei com você. Vamos?! Minha mulher já ligou três vezes e eu não atendi.
Os dois amigos saem da padaria e são interpelados por um mendigo que lhes pede um troco. Os dois olham, negam e continuam a conversa. O mendigo que deitava sobre um jornal da semana passada, levanta-se e aborda outro caminhante.
Do jornal sujo estendido na calçada a manchete que saltava e enchia os olhos de quem passava era: “Bolsonaro critica cotas e nega dívida com negros: - não escravizei ninguém...”
Ao mendigo que não sabia ler, e que usava o jornal como cama e cobertor e os caminhantes que passavam atrasados ou no celular, notícias em letras pequenas escapavam aos olhos de todos: “Petrobras dá início a processo de venda de refinarias”; “Famílias donas do Itaú receberam R$ 9 bilhões em dividendos na crise”...

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