DOIS TEXTOS SOBRE PROFESSORES PARA REFLETIR, MAS NÃO IMITAR

Professores improvisados

Graciliano Ramos 

Conheci um sujeito que dispunha de vasto palavreado e ensinava gramática. Ensinava por um processo engenhoso. Reunida a classe punha os óculos, abria um livro, percorria a página de alto a baixo com o índice, gargarejava umas coisas que ninguém compreendia e terminava:

- Isso não tem importância. Vamos para diante. Tragam-me o adjetivo amanhã.

No outro dia cena igual: os mesmos óculos, o mesmo livro aberto, o mesmo gesto com o fura-bolos amarelo de cigarro, o mesmo gargarejo, a mesma conclusão:

- Adjetivo é isso que vocês sabem. Não interessa. Para a frente! Decorem o pronome.

A propósito de análise dissertava com vigor sobre a dinastia dos Sugs: falavam-lhe em concordância e ele explicava metafísica. Ao cabo de alguns anos, excetuando gramática, os alunos sabiam tudo. Houve entre eles, com o correr do tempo, agricultores, jornalistas, padres, advogados, funileiros e poetas. Sempre ignoraram a disciplina que o homem professava.

Esta história pode ser exagero ou mentira. Mas ninguém a desmancha, sustento-a – e ela permanece. Há muitas verdades assim, inconcussas por falta de quem as desmantele.

O meu conto será aceito sem dificuldade, porque, senão é rigorosamente verdadeiro, é pelo menos verossímil. Realmente esse professor que, para livrar-se dum obstáculo, mistura alhos com bugalhos, mete os pés pelas mãos, deixa os rapazes em jejum, não é daqui nem dali: é de quase todas as cidades do interior. Músico de sete instrumentos, criatura fatigada, depois de exercer dez ofícios sem se fixar em nenhum, esbarra com um dilema temeroso – queimar os miolos ou abrir uma escola.
Se estira a canela, o prejuízo é pequeno: se se agarra à segunda hipótese, vem a lume, passados meses, um jornalzinho cheio de sonetos.

Não pretende consertar nada. O que Deus Nosso Senhor fez, ou alguém por ele, deve estar certo. Limito-me a expor um fato. E para que me acreditem, confesso, com vergonha, que sou suspeito.

Por motivo de ordem econômica, resolvi um dia, a exemplo de toda gente, ministrar aos outros alguns conhecimentos proveitosos a mim. Não me arrisquei a preparar oleiros ou sapateiros pois ninguém tomaria a sério sapato ou panela que eu fizesse. Procurei a matéria exótica, de verificação difícil. Imaginando, sem grande esforço, que na Itália existia uma língua, pedi catálogos ao Garnier e dispus-me resolutamente a estropiar o italiano com a ajuda de Deus. Anunciei: “Italiano rápido e barato a cinco mil-réis por cabeça, mensalmente. Aproveitem. Lições em todos os dias úteis e inúteis. Tempo é dinheiro como diz o gringo.”

Isto deve ser fácil, pensei. É só arrumar no fim das palavras one ou ine. De estrangeiro cá na terra ninguém entende. E se aparecer por aí um carcamano, adoeço e perco a fala.

Pois, senhores, não me dei mal. Matricularam-se cerca de trinta idiotas: comecei a trabalhar com energia e confiança. Ainda estaria trabalhando, se dois alunos, finda a primeira quinzena, não entrassem em concorrência comigo, deslealmente, fundando escolas que italianizaram toda a localidade.

Creio que os professores sertanejos são, com diferenças pouco sensíveis, indivíduos como eu. Ensinam antes de aprenderem. Talvez fosse mais razoável aprender para ensinar. Mas poderei eu censurá-los? Não, decerto. Todos precisamos viver. E desejamos, naturalmente, aparentar o que não somos. Por que é que estou a redigir estas niquices? Por que m’as pediras? Ora essa! Não seria melhor declarar francamente e honestamente que não sei escrever?

FONTE

RAMOS, Graciliano. Professores improvisados. In: ______. Viventes das Alagoas: quadros e costumes do Nordeste. Posfácio: Tristão de Athayde. 6. ed. Rio de Janeiro: Record; São Paulo: Martins, 1976. p. 133-135.

----------------------------------------------------------------------

Meu professor de análise sintática

Paulo Leminski

Meu professor de análise sintática era o tipo do
sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida,
regular com um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.

FONTE




Comentários

  1. A reflexão à qual o título dessa postagem nos chama parece mais desafiadora se nos apercebemos de Graciliano Ramos: “Há muitas verdades [...] inconcussas por falta de quem as desmantele”. Seu conto, contrastado com o poema de Leminski, inclusive, encerra várias representações do professor da educação básica, notadamente o de língua materna, e permite, de igual modo, uma série de problematizações. Destaco algumas: 1) Onde encontramos esses professores improvisados e de análise sintática, tal como descritos no conto e no poema? 2) Como surgem em nosso país ou são por ele fabricados? 3) Já não os fomos em maior ou menor medida? 4) De que maneira superarmos o essencialismo a que se prostra alguma crítica ao nosso modelo de educação? Veja bem: essas perguntas não ensejam qualquer justificativa, quanto às situações retratadas nos textos, mas, sua problematização, sem a defesa de uma tese pré-concebida. Há casos e casos, em nossas escolas. E Graciliano Ramos, ao lado de Paulo Leminski, deve nos servir para a análise de cada um deles. Porque, pasmem, há indivíduos que são levados a ensinar antes de aprenderem. E há aqueles que se deixam levar.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas